Indígenas
venezuelanos no abrigo improvisado em Boa Vista.
Esse
pequeno grupo de indígenas forma parte de um fluxo de imigrantes
venezuelanos, que também é feito de não indígenas, que atravessam a
fronteira em busca de alimentos, empregos e melhores condições de vida no
Brasil. Muitos não querem mais voltar ao país de origem. A maioria chega pelo
pequeno município de Pacaraima, com 16.000 habitantes, e depois seguem para a
capital Boa Vista. Entre os indígenas, o movimento, na maioria dos casos,
implica em ir para as cidades, receber doações, ganhar dinheiro com o
artesanato e a mendicância, e depois voltar para sua comunidade. Já os não
indígenas buscam se regularizar no Brasil, trabalhar e começar uma nova vida longe
da escassez da Venezuela.
Ambos os casos têm em comum a fuga da fome. “Na Venezuela, com
um salário você consegue comer por apenas três
dias”, disse Freiomar Viana, 41. “Se você tem família, como vai fazer para comer?”.
Há um ano, ele trouxe a família de Caracas para o Brasil e hoje trabalha em uma
lanchonete em Boa Vista.
Desde o ano passado, a cidade de Pacaraima, acostumada ao fluxo
de venezuelanos que vão até lá para comprar alimentos e produtos de
necessidades básicas, viu sua rotina mudar. Os habitantes do país vizinho
passaram a cruzar a fronteira não somente para fazer compras, mas para tentar
permanecer no ali. Segundo a Defesa Civil, em agosto, um dos meses mais
críticos, havia 177 venezuelanos vivendo nas ruas da cidade em situação
precária. Em dezembro, a cidade decretou emergência na saúde pública
A crise econômica e política da
Venezuela é a grande
responsável por esse êxodo. A socióloga e professora de estudos sobre
fronteiras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Francilene Rodrigues,
explica que, historicamente, a Venezuela é um país que recebe imigrantes e não
o contrário. Mas foi no início da gestão de Hugo Chávez (1999-2013) que o
movimento imigratório também começou, primeiramente encabeçado pela classe
média, que passou a deixar o país rumo aos Estados Unidos e à Espanha,
principalmente. Depois, os mais pobres passaram a seguir o mesmo caminho. “Esse
processo aumenta a partir de 2010”, diz. “O alto custo de vida na Venezuela,
atrelado à queda no preço do petróleo causou um baque na economia de lá”.
Para María Pérez, indígena warao, a morte do ex-presidente Hugo
Chávez, em 2013, foi um marco econômico. “Depois da morte de Chávez, acabou a
comida e chegou a crise”, contou. “Não há nada para comprar, e quando há, é muito caro”. Segundo a
professora Francilene Rodrigues, a maioria dos imigrantes venezuelanos é feita
de jovens em idade produtiva, além dos indígenas, que chegam com as famílias
inteiras. Os dois grupos fazem um movimento migratório que é, em sua essência,
por uma distância pequena de onde vivem. “Os venezuelanos têm um orgulho muito
grande da sua nação”, diz. “O fato de estarem em um lugar muito próximo com a
fronteira dá a eles a oportunidade de voltar para a Venezuela a qualquer
momento”.
A fala da professora Marjorie González, 41, deixa claro esse
orgulho venezuelano. “Estou a somente 24 horas do meu país”, disse. “Eu amo meu
país. Mas, ainda assim, é melhor estar aqui no Brasil, porque tenho mais
tranquilidade”. De Caracas, ela veio para Boa Vista depois que ladrões
invadiram sua casa e levaram quase tudo. “Colocamos as mãos na cabeça e
pensamos ‘o que vamos fazer agora?”, indagou. Veio com o marido e a filha, de
seis anos, que, por não ter documentos ainda, está sem estudar. Ainda assim,
não quer voltar tão cedo para a Venezuela. “A culpa por nosso país estar assim
é nossa", afirmou. "Nós permitimos que fizessem o que quisessem com o
nosso país. Os valores acabaram”.
Marjorie vende no Brasil roupas e perfumaria comprados na
Venezuela. Está esperando a resposta do seu pedido de refúgio, que é uma forma
de se estar regular no país. Esse pedido é válido para pessoas que sofrem
perseguições políticas ou vivem situações de ameaças, mas, ao menos até o
momento, a situação econômica de um país não se configura ameaça diante da lei
brasileira. Portanto, não é possível saber se o pedido de Marjorie será aceito
pelas autoridades brasileiras. Em 2014, nove venezuelanos fizeram o pedido de
refúgio no Brasil. Em 2015, esse número subiu para 234. Já no ano passado,
foram 2.230. Neste ano, até a última quarta-feira, esse número já chegava a
1.035.
Missão Roraima
A capital de Roraima viveu o auge dessa chegada de imigrantes venezuelanos no final do ano passado. Como os
indígenas chegam e se instalam em terrenos, calçadas e praças, e praticam a
mendicância como parte da cultura de subsistência, Boa Vista acabou tomada por
pessoas nas ruas. A iniciativa do município foi então tentar realizar uma
deportação em massa, planejando levá-los de ônibus até a fronteira. Mas a
legislação brasileira proíbe a deportação em massa e a Defensoria Pública
entrou rapidamente com um pedido de liminar suspendendo a deportação. O
Ministério Público estadual entrou então com uma ação pedindo o abrigo das
crianças indígenas que ficavam nas ruas, mas o juiz entendeu que era preciso
abriga-las junto às suas famílias. Por isso, desde o final do ano, muitos
indígenas e não indígenas estão abrigados em um ginásio na periferia de Boa
Vista.
O local foi batizado de centro de referência ao imigrante, mas
está com as instalações precárias, fossas abertas, as pessoas dormem no chão e
os alimentos que chegam são de doações. A população do abrigo varia
diariamente. No dia em que a reportagem esteve ali, a Fraternidade, que toma
conta do local, contabilizava 193 pessoas, sendo 57 não indígenas e o restante,
indígenas warao. Mas esse número chegou a quase 300.
Diante do impasse, o Ministério Público Federal decidiu intervir in locuo. Na última
semana, realizou uma missão até Roraima para fiscalizar a situação desses
imigrantes e propor possíveis medidas para que a situação fosse contornada. A
missão de três dias contou com representantes do MPF, da Casa Civil, de
organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos e dos
imigrantes, como agências da ONU, antropólogos e membros da Polícia Federal. O
EL PAÍS acompanhou os três dias da missão, que contou com a visita ao abrigo, à
cidade de Pacaraima e instalações como o hospital de lá, e, no terceiro dia,
realizou uma audiência pública para debater ações com os imigrantes.
Ao longo da missão encabeçada pelo MPF, houve também uma reunião
agendada com a prefeita de Boa Vista, Teresa Surita (PMDB), que não apareceu.
Enviou cinco secretários e foi representada pela procuradora do município,
Marcela Medeiros. O discurso, porém, foi um só: a cidade não tem condições
financeiras para absorver os imigrantes. “Não temos condições financeiras de
assumir a responsabilidade dessas pessoas”, disse a procuradora Marcela
Medeiros. As reclamações por parte do município, porém, foram as mais variadas:
desde o problema da falta de documentação dos imigrantes, o que impede, por
exemplo, que as crianças sejam registradas pelo Governo, e, logo, não entram na
contabilidade na hora de distribuir verbas para a educação, até ao problema no
trânsito que os imigrantes causam ao pedir dinheiro nos sinais, segundo apontou
o secretário de Transportes.
O poder público também afirma que a criminalidade aumentou com a
chegada dos venezuelanos às cidades brasileiras. Mas não há dados que associam
diretamente os imigrantes à criminalidade. “A Polícia Federal Esteve aqui nos
meses de setembro e outubro e produziu um relatório onde afirma categoricamente
que não há evidências de que a presença do imigrante venezuelano tenha
aumentado a criminalidade no Estado de Roraima.”, disse João Akira Omoto,
procurador federal dos direitos do cidadão adjunto, que encabeçou a missão do
MPF.
Outra reunião da missão foi agendada com a governadora de
Roraima, Suely Campos (PP), que recebeu parte da delegação, mas a reportagem não
pôde participar da conversa. Após a reunião, ela concedeu uma breve entrevista,
e afirmou que “não sabe” o que fazer com a situação dos imigrantes no Estado.
Assim como no âmbito municipal, o Governo estadual também reclamou da falta de
condições financeiras para receber os imigrantes. "O Estado está sozinho
nesta demanda grande", disse a governadora. "O Governo Federal
precisa chegar até nós para nos ajudar".
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