Nem mesmo as crianças foram poupadas
das atrocidades decorrentes da guerra de Canudos. Sem dúvida, esse foi o
segmento que mais sofreu com os desastres provocados pelo monstruoso conflito.
As informações a tal respeito são por demais assustadoras.
Os soldados na sua fúria perversa não
respeitavam ninguém, matando de forma indiscriminada. Contanto que fosse gente
de Canudos. Assim, milhares de crianças indefesas foram mortas e incineradas, a
maioria delas no colo dos seus próprios genitores.
Dois anos após o fim do massacre,
Martins Horcades relatava haver encontrado, só em uma casa, “22 cadáveres já
queimados, de mulheres, homens e meninos”. No mesmo relato informava o
acadêmico baiano ter visto, “em uma rua uma mulher, tendo sobre uma das pernas
uma criancinha e em um dos braços outra, todas três quase petrificadas!”. Estas
e outras cenas são parte do álbum do baiano Flávio de Barros, fotógrafo
comissionado junto à quarta expedição.
Os lances de barbaridade envolvendo
crianças prisioneiras se multiplicavam a todo o momento, chegando-se ao extremo
da perversidade humana. Um soldado contou a frei Pedro Sinzig que vira um
colega de farda pegar uma criancinha pelos pés e arremessá-la de encontro a uma
árvore, espatifando-se-lhe a cabeça.
Depois da vitória das forças
expedicionárias, milhares de meninos e meninas, entre oito e quinze anos, foram
sequestrados e em seguida vendidos a fazendeiros e prostitutas da Bahia (e até
mesmo do Rio de Janeiro) onde, acabariam submetidos ora ao trabalho escravo,
ora à prostituição.
Em minucioso relatório, exarado no
final de 1897, a comissão do Comitê Patriótico da Bahia, encarregada de
recolher as crianças feitas prisioneiras durante a guerra, dava conta de “que
grande parte dos menores reunidos pela comissão, dentre eles meninas púberes e
mocinhas, se achavam em casa de quitandeiras e prostitutas. Pode-se afirmar
[continua o excelente relato] que muitas pessoas procuravam adquiri-las para
negócio.”
Como no tempo da escravidão, a
comercialização desses menores era feita às claras e, em muitos casos, com
recibo de compra e venda. Ao supracitado Comitê, que tentou recuperar uma
criança que se encontrava sob o poder de certo fazendeiro, de nome Emílio
Cortes, fornecedor das forças em operação, disse este que “o menino era dele;
estava com ele; não tinha que dá satisfação a ninguém, pouco se lhe importava
se o pai ou a mãe, ambos fossem Judas ou o diabo; a questão era que o menino
lhe tinha sido dado pelo general e disto havia lhe passado o recibo para maior
garantia. Não o entregava”.
Além do sequestro e comercialização
de órfãos, o referido relatório denunciou também numerosos casos de estupro
praticados por soldados contra crianças e adolescentes. Uma das vítimas, Maria
Domingas de Jesus, de 12 anos, “foi desvirginada, violentamente, pela praça do
25° batalhão de infantaria, de nome José Maria.”
Criado inicialmente para prestar
socorro aos soldados envolvidos no conflito, o Comitê Patriótico acabou por
ocupar-se também da gente de Canudos, especialmente mulheres e crianças. Ao
concluir suas atividades no final de 1897, a organização apresentou seu
balanço: “Não foi pequeno o número de vítimas que socorremos e abrigamos entre
mulheres, crianças e meninos de ambos os sexos, que conseguimos reduzir debaixo
da nossa bandeira de caridade, evitando a uns a morte pela falta de conforto e
à míngua de recursos, a outros a verdadeira escravidão em que se achavam e,
porventura, a prostituição no futuro”.
O drama das crianças de Canudos
inspiraria mais tarde o jovem poeta baiano Francisco Mangabeira, testemunha
ocular dos fatos e autor do livro Tragédia épica, lançado pela primeira vez no
ano de 1900. A obra enfeixa um conjunto de 20 poemas, em que o autor, poeta de
rara sensibilidade, narra os horrores da guerra. É o caso do poema “Crianças
Prisioneiras”, aqui transcrito parcialmente:
“Não há cenas mais tristonhas,
Nem de tamanha aflição:
Bocas outrora risonhas,
Murchas à míngua de pão.
Nem de tamanha aflição:
Bocas outrora risonhas,
Murchas à míngua de pão.
(...)
Tivestes beijos e afagos,
Mas hoje a fatalidade
Fez vossos dias pressagos,
Ainda no albor da idade.
Tivestes beijos e afagos,
Mas hoje a fatalidade
Fez vossos dias pressagos,
Ainda no albor da idade.
Sois como as aves implumes
Que um dia a desgraça quis
Arrancar de entre os perfumes
Dos quietos ninhos gentis.
Que um dia a desgraça quis
Arrancar de entre os perfumes
Dos quietos ninhos gentis.
(...)
Os homens riem-se, vendo
Que ides morrer como cães...
Ai! Que pesadelo horrendo
Para aquelas que são mães”.
Os homens riem-se, vendo
Que ides morrer como cães...
Ai! Que pesadelo horrendo
Para aquelas que são mães”.
José Gonçalves do Nascimento*
*Poeta e cronista
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
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